Nos primórdios do lançamento do PVCLV, em 1963, as principais estratégias de controle propostas eram a notificação obrigatória, diagnóstico e tratamento oportuno de casos humanos, controle de vetores com inseticidas e eutanásia de cães soropositivos.
De fato, essas estratégias pareciam ser apropriadas para enfrentar uma doença considerada principalmente rural, ocorrendo em ambientes específicos, como boqueirões e pés-de-serra. Entretanto, a sociedade brasileira passou por grandes mudanças a partir desse momento, com um processo inexorável de urbanização.
Foram relatados movimentos massivos da população das áreas rurais afetadas por secas severas na região nordeste do país. Inicialmente, a migração se deu em direção às periferias das capitais e grandes cidades dessa região e, posteriormente, para as demais regiões do país.
Esse processo intenso, rápido e excludente de urbanização levou à segregação social, com as periferias das grandes áreas metropolitanas caracterizadas pela falta de serviços urbanos, destruição ambiental e más condições de vida.
Esse foi o cenário ideal para a introdução e manutenção do ciclo de leishmaniose visceral zoonótica, com o cão doméstico como principal reservatório da infecção e o vetor principal, o flebotomíneo Lutzomyia longipalpis, adaptando-se bem ao novo ambiente peridomiciliar (Rangel e Vilela, 2008).
No entanto, todas essas transformações na sociedade brasileira e na epidemiologia da leishmaniose visceral não foram acompanhadas por modificações substanciais nas estratégias de controle preconizadas pelo PVCLV original.
As principais estratégias para reduzir a transmissão propostas pelo atual PVCLV ainda tem como principais pilares o controle de vetores com inseticidas residuais e a eliminação de cães soropositivos. No entanto, poucos estudos epidemiológicos bem desenhados dão suporte para seu uso em larga escala, a maioria mostrando efetividade limitada e apenas em contextos específicos (Romero e Boelaert, 2010).
Novas abordagens promissoras têm sido preconizadas, como vacinas para cães, coleiras impregnadas com inseticidas, tratamento de cães infectados e inseticidas tópicos, mas ainda há muitas dúvidas sobre sua efetividade.
Dentre essas, o uso de coleiras caninas impregnadas com inseticidas (deltamethrin-impregnated dog collars – DMC) tem se destacado como ferramenta disponível e potencialmente útil no controle da LV (David et al., 2001; Brianti et al., 2016).
O mecanismo implicado seria sua ação repelente e inseticida (David et al., 2001; Ramezani-Awal et al., 2009), o que reduziria o contato do vetor com o cão (Aoun et al., 2008; Ferroglio et al., 2008) por até oito meses (David et al., 2001). Estudos avaliando a efetividade do uso de DMC têm demonstrado resultados satisfatórios.
Ensaios de campo em áreas endêmicas de LV na Itália (Maroli et al., 2001) e Irã (Gavgani et al., 2002), por exemplo, evidenciaram que cães utilizando DMC durante a estação de transmissão têm um risco significativamente menor de infecção com L. infantum. O estudo no Irã (Gavgani et al., 2002) forneceu a primeira evidência de que uma intervenção populacional baseada em DMC poderia levar a uma redução significativa de cerca de 40% na taxa de incidência de L. infantum em crianças. 3 No Brasil, uma série de estudos locais também indicaram a efetividade de estratégias de controle da LV baseada no uso de DMC.
Em Andradina/SP, por exemplo, um estudo mostrou a efetividade das coleiras na queda da prevalência canina e da incidência de casos humanos, quando associadas às medidas de controle vigentes (Camargo-Neves et al., 2004). Um estudo de campo em Capitão Enéas/MG, mostrou que as coleiras reduziram as chances de os cães aumentarem o título de anticorpos em 50% (Reithinger et al. 2004). Um estudo de intervenção em Governador Valadares/MG também revelou uma efetividade da DMC de cerca de 50% para redução da incidência de infecção canina (Coura-Vital et al., 2018).
Estudo teórico com base em modelos matemáticos demonstrou um melhor desempenho do uso das coleiras impregnadas para a redução das taxas de infecção canina e humana em comparação à eutanásia e à vacinação canina (Sevá et al., 2016).
Entre 2011 e 2016, nosso grupo de pesquisa avaliou a efetividade do uso de coleiras impregnadas com deltametrina 4% (Scalibor®) como medida adicional àquelas de controle já preconizadas pelo programa de vigilância e controle da LV no Brasil. Esta estratégia incluindo as coleiras caninas foi então implementada em áreas “intervenção” em municípios de transmissão intensa identificados no Brasil, simultaneamente à manutenção das intervenções padrão em áreas “controle”, nos mesmos municípios.
Os desfechos de interesse avaliados foram a prevalência de infecção canina e a incidência de casos humanos. Inicialmente foram incluídos 7 municípios (Teresina/PI, Fortaleza/CE, Canindé/CE, Maracanaú/CE, Eusébio/CE, Araguaína/TO e Montes Claros/MG) para uma avaliação com 4 ciclos semestrais da intervenção. Seis municípios foram incluídos tardiamente no projeto para uma avaliação restrita a 2 ciclos de intervenção: Mossoró/RN, Três Lagoas/MS, Gurupi/TO, Rondonópolis/MT, Caxias/MA e Porto Nacional/TO. Ao longo do projeto foram encoleirados e examinados mais de 120.000 cães nas áreas de intervenção e examinados mais de 90.000 cães nas áreas controle (Werneck, 2017).
De acordo com os resultados obtidos neste estudo, o uso das coleiras esteve associado a uma redução significativa de cerca de 50% na prevalência e incidência da infecção canina quando comparado às áreas onde apenas as ações de controle habituais foram implementadas, ou seja, onde não houve encoleiramento (área controle) (Werneck, 2017; Kazimoto et al., 2018; Alves, 2016).
O uso de coleiras impregnadas com inseticida foi associado a uma redução no número de flebotomíneos capturados de 15% (p = 0,004) e 60% (p <0,001) em Montes Claros e Fortaleza, respectivamente (Silva et al., 2018). Em relação à incidência de casos humanos, o uso das coleiras esteve associado a uma redução significativa de cerca de 27% (Werneck et al., 2018).
Esses resultados são ainda mais significativos quando se considera que eles foram verificados mesmo na vigência de uma série de problemas operacionais, como uma alta taxa de perda de coleiras, indicando que a correção dessas dificuldades poderia contribuir para um aumento da efetividade de campo (Alves et al., 2018).
Os resultados desse estudo adicionaram ao conhecimento sobre a efetividade das coleiras uma dimensão mais abrangente, não só porque se tratou de um estudo de âmbito nacional, mas também porque avaliou tanto o impacto das DMC na infecção canina como na incidência de casos humanos e na densidade vetorial.
Estudo subsequente, demonstrou que o uso de coleiras era custo-efetivo para o controle da leishmaniose visceral canina (Werneck et al., 2017). É nesse contexto que o PVCLV do Ministério da Saúde resolve incorporar as coleiras impregnadas com inseticida no arsenal de estratégias preconizadas para o controle da LV.
De forma coerente, a incorporação dessa tecnologia de prevenção vem acompanhada da demanda por uma avaliação desse processo de implementação. Assim, considerando nosso histórico envolvimento com a realização de estudos de intervenção comunitária para avaliação da efetividade de estratégias de controle da LV (Costa et al., 2007; Werneck et al., 2014), incluindo esses mais recentes abordando o uso da coleiras impregnadas com inseticida (Werneck, 2017; Alves, 2016, Silva et al., 2018, Alves et al., 2018; Kazimoto et al., 2018; Werneck et al., 2018) apresentamos esse projeto que visa avaliar a implementação do uso das coleiras impregnadas com inseticida em cães em municípios prioritários para o controle da leishmaniose visceral humana e canina no Brasil, considerando seus potenciais efeitos na infecção humana e canina, na incidência de casos humanos, na densidade vetorial, na taxa de infecção e no hábito alimentar de flebotomíneos.
Além disso pretende-se avaliar aspectos operacionais relacionados ao próprio processo de implementação da estratégia assim como avaliar a percepção da população sobre os riscos e benefícios dessa intervenção vis-a-vis a eutanásia canina e o 4 controle vetorial com inseticidas de ação residual.